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Socialização profissional, a inserção em uma comunidade de prática

 


         A veemência do tema se cristaliza a partir das atuações como profissional de segurança nos finais de semana em eventos noturnos na cidade de Florianópolis/SC. O olhar treinado, como descrito pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (2000, p. 19), durante o trabalho noturno instrumentalizava o pesquisador dando destaque a lugares, espaços e comportamentos marcados no ambiente festivo. Assim, sensibilizado pelas teorias estudadas na graduação de Ciências Sociais, as observações foram se aprofundando e descortinando a teia de relações construídas durante a dinâmica das festas. O trabalho prevê um olhar sobre os profissionais de segurança, a experiência pessoal em primeiro plano, a luz dos conceitos de comunidade de prática (LAVE; WENGER, 1991), saberes profissionais (DUBAR, 1997), e socialização profissional (PLAISANCE, 2003) (MELO; VALLE, 2013). A pergunta que se propõe a responder é: como acontece a aprendizagem dos agentes de seguranças para atuação em eventos noturnos?

As experiências vividas demostram incorporar um habitus que se faz reconhecido entre os profissionais de segurança e os clientes das casas noturnas. Uma internalização gradual de um sistema de códigos e símbolos partilhados a partir do reconhecimento de si e do outro quanto a posição social desempenhada nos eventos. Um processo de socialização externado na sociabilidade apresentada durante as interações construídas ao longo da vida. Dubar (1997) afirma que a identidade é produto de sucessivas socializações, sejam elas primárias, secundarias ou profissionais.

A diferenciação social presente no ambiente das casas noturnas, é sentida nos profissionais de segurança que na ambivalência de seu uniforme, possuem prerrogativas para limitar acessos e inibir desordem, como também frente aos estratos mais favorecidos marca sua função social subalterna. Agora a expressão: “sabe com quem está falando?”, deixa exposto os conflitos e hierarquias presentes na festa, ou no rito de autoridade – um traço sério e revelador de nossa vida social (DAMATTA, 1997, p. 184). Esta frase é algo que rapidamente o agente de segurança deve aprender a exercer resiliência.

Neste cenário, considero a equipe de segurança como uma comunidade de prática em que compartilham uma visão de mundo e conhecimentos característicos de uma socialização profissional. Posso dizer que inicio minha participação periférica legítima (LAVE; WENGER, 1991) no papel de segurança, tendo a oportunidade de transitar por diversos postos de trabalho na mecânica organizacional das casas noturnas. Tais postos abrangem do atendimento na portaria com informações e revista dos frequentadores, ao atendimento a camarotes, e no controle de acessos diversos a áreas reservadas para clientes, bem como para o fluxo de funcionários. Assim, o contato com clientes e funcionários é constante, o que possibilita descrever inúmeras formas de interação descritas em trabalhos anteriores. O recorte deste, centra-se na apresentação da inserção ou acesso ao campo, assim como o processo de aprendizagem-ação e de socialização profissional para o desempenho da função e atribuições de segurança.

Em meio ao caos, que o olhar a primeira vista pode identificar, com os inúmeros indivíduos curtindo o seu momento. Ao fazermos a aproximação, em outras palavras, ao nos situarmos no chão da festa ou do lado daqueles que a organizam, podemos visualizar muita ordem e controle para manter a harmonia. O controle das tensões mediante o choque das relações de poder e de hierarquias sociais presentes parece um caldeirão efervescente que se mantêm por valores e convenções construídas por aqueles que compartilham o espaço e seu sistema simbólico. Por esta razão o treinamento do segurança para festas noturnas, passa por um conhecimento, em certa medida, espontâneo e partilhado por meio da experiência e vivência em cada um dos ambientes mediante um saber profissional. Cada casa noturna, cada evento é distinto do outro, o cenário diferente guarda uma dinâmica própria a partir dos promotores da festa, dos organizadores, do tipo de música, dos patrocinadores, dos trabalhadores e dos clientes. Esta aprendizagem não surge no primeiro evento, mas na construção do metier de agente de segurança, ou no que Michel Maffesoli (2005)descreve como a “ambiência englobante”.



 Devemos entender este processo de socialização geral que engloba toda a vida, como constitutivo dos seres humanos como seres sociais (PLAISANCE, 2003, p. 2), ou melhor, profissionais.

A socialização profissional é um processo por meio do qual os indivíduos constroem valores, atitudes, conhecimentos e habilidade que lhes permitem e justificam ser e estar em uma determinada profissão. É um processo de concretização dos ideais profissionais. Sob um aspecto mais objetivo, a socialização profissional constitui-se no processo de traduzir em práticas profissionais os conhecimentos inerentes à profissão. E, sob o aspecto subjetivo, constitui-se na efetiva identificação, adesão à profissão e ao outro, pela compreensão do mundo no qual ele está e por tornar tal mundo o seu próprio. Muito além de qualquer circunscrição, é um modo de consolidação de uma identidade individual e coletiva. (MELO; VALLE, 2013, p. 100).


O primeiro momento de inserção como acontece através de um convite pautado em determinadas características físicas e de necessidades pessoais objetivas. Este contato traz um aprendizado inicial, o mesmo começa com várias orientações do Robertinho1, segurança experiente e naquela época com 3 anos de atuação. Em seguida, um discurso disciplinador contrário à brutalidade física, um domínio e controle quanto às agressões, mesmo quando a essência da função estimule a masculinidade e a firmeza nas ações. Sem estar em um espaço legítimo de aprendizagem com objetivo de aquisição de um certificado, a experiência de ouvir o discurso da comunidade começa a dar conformidade na maneira de atuar. Podemos destacar que a socialização é um deixar-se moldar, um deixar-se forjar por determinado grupo de pertença, fazendo com que as propensões individuais sejam abafadas pelas do grupo (MELO; VALLE, 2013, p. 83).

A relação com outros seguranças se dá enquanto acontece a interação com o grupo de mesmo perfil2. Isso possibilita conversar e sem perceber participar da aprendizagem. O fato de se comentar sobre festas passadas, relatar ações, procedimentos, e contar parte de sua experiência, serve para o aprendizado do novato. Ninguém fica sobre tutela de um veterano, na verdade, a inserção na equipe o faz receber determinados privilégios e informações de como tratar determinado grupo ou cliente frequentador. De acordo com Lave e Wenger (1991) a prática improvisada cria um currículo de ensinamento3, em que, no caso, as várias experiências e postos de atuação na casa noturna promovem o aprendizado do novato até atingir as posições de privilégios e coordenação. Acontece então um processo de construção de um conhecimento e de confiança mútuo entre os colegas, trazendo um respaldo para atuação no empoderamento pelo tempo de serviço e vivência. Valores que em uma comunidade de prática pautada na masculinidade, lhe são mais caros do que a simples comprovação de um currículo de aprendizagem.

O acesso pleno e efetivo a comunidade, além de liberar para conhecer mais a fundo as relações imbricadas, também trouxe um envolvimento maior do pesquisador com o grupo profissional. Em outras palavras, também sou afetado pelo campo, enquanto adquiro gosto pela música eletrônica, pelo consumo de energético, o hábito de mascar chicletes, no interesse por campeonatos de artes marciais mistas e na assimilação de uma postura corporal. Estes são fatores que conformam uma identidade de grupo, a comunidade com suas práticas que se estendem para além do meio onde são realizadas. Esse movimento viabiliza ser afetado pela comunidade, bem como, de afetá-la. Em outras palavras, acontece a efetivação da interiorização do processo de socialização que agora pode ser observada através de sua externalização.



 A aprendizagem periférica legitima contribui para pensar a maneira em que um conhecimento é legitimado por meio da prática e não só de um currículo teórico, embora também respaldado por ele. A vivência passa a ser um processo de ensino e preparação de profissionais para atuar como seguranças. Muitos membros da comunidade de prática não sabem que estão em aprendizagem. Porém, por meio dos discursos, práticas, conversas, comportamentos e trocas de experiências, muitas vezes não intencionais, possibilitam a formação atual dos agentes de segurança das melhores casas noturnas do Sul do Brasil. A aquisição dos códigos, valores e regras de convivência possibilita ao segurança ter maior autonomia da vontade a partir do entendimento da moral compartilhada no ambiente. A passagem de novato para veterano com acesso pleno a comunidade de prática requer um currículo de ensinamento, um processo mediado por relações, conhecimentos e comportamentos construídos durante a dinâmica dos eventos.

O metier de agente de segurança, embora reconhecidamente marcado na expressão corporal, envolve muito mais do que a postura ostensiva, o habitus é internalizado paulatinamente por meio da troca e na interação constante entre colegas e clientes que participam dos eventos. O conceito de socialização profissional instaura subsídios para melhor compreensão do processo contínuo de assimilação da moral presente nos momentos festivos em casas noturnas. Desta maneira, podemos identificar que a socialização acontece ligada a uma instituição em um tempo, um espaço e segundo os grupos sociais (PAISANCE, 2003, p. 5).


Referencias:

DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Porto/Portugal: Porto Editora, 1997.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e escrever. In:___. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; SP: Editora UNESP, 2000.

DA CONCEIÇÃO, Daniel M. Marretadas repetitivas: a continuidade e a remodelação de valores sociais em três casas noturnas de Florianópolis. Mosaico Social, v.06, 2013. p.300 – 317.

DAMATTA, Roberto. Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre individuo e pessoa no Brasil. In:___. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. RJ: Rocco, 1997. p. 179-248.

LAVE, Jean; WENGER, Etienne. Aprendizaje situado: participación periférica legítima. Tradução: Miguel Espíndola e Carlos Alfaro. New York: Cambridge University Press. 1991.

MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto alegre: sulina, 2005.

MELO, Marilândes Mol Ribeira; VALLE, Ione Ribeiro. Socialização e socialização profissional: interface entre forjar e negociar outro ser. Roteiro, v. 38, 2013. p. 79-102.

PLAISANCE, Éric. Socialização: modelo de inclusão ou modelo de interação? Revista PerCursos. Centro de Ciências da Educação. Florianópolis: UDESC, v 4, n. 1, out/2003. p. 177-193.


Notas:

1Nome fictício. Segurança casado, pai de três filhos, idade de 40 anos, natural do Rio Grande do Sul. Na época trabalhava como operador de telemarketing. Atualmente, finaliza o curso técnico de enfermagem, trabalha em um posto de saúde do município como contratado e nunca fez o curso de vigilante.

2Os critérios para escolha dos seguranças para cada grupo estão pautados em características fenotípicas. Na portaria irão os de menor estatura e mais franzinos. Para pista os “pitbulls”, geralmente com maior porte físico e com habilidades em luta e imobilização, são a linha de frente, são aqueles colocados para o confronto com a responsabilidade de retirar clientes encrenqueiros de dentro da casa. O grupo escolhido para o camarote possui uma distinção, pode misturar ambas as características fenotípicas, centrando destaque nas ações e no comportamento mais paciente durante situações inconvenientes, supostamente maior educação no trato e na capacidade de mediação. Características aprendidas pela experiência, mas a postura firme na atuação também é requisito importante.

3“Un curriculum de aprendizaje consiste en oportunidades situadas (incluyendo así ejemplares de varias clases a menudo pensados como “metas”) para el despliegue improvisado de práctica nueva. Un curriculum de aprendizaje es un campo de recursos de aprendizaje de la práctica diaria visto desde la perspectiva de los aprendices. Un curriculum de enseñanza, por el contrario, se construye para la instrucción de los novatos” (LAVE; WENGER, 1991).


 Trabalho produzido na disciplina Educação e Pesquisa Sociológica – PGE 410131, ministrada pela Professora Dra. Ione Ribeiro Valle, semestre 2014-2.


O ideal burguês na educação moderna

 



        O filósofo Marshall Berman (1940-2013) em seu livro Tudo que é sólido desmancha no ar (1986), faz apontamentos sobre a modernidade, identificando no Manifesto do partido comunista (2007) de Marx e Engels, a presença de um caráter de modernização e de modernismo. O autor descreve como modernização as transformações políticas e econômicas, e como modernismo as mudanças na arte, na sensibilidade e na cultura. Elas simbolizam o que acontece com a sociedade ocidental durante os séculos XVIII, XIX e meados do XX.

        As mudanças na ordem macro e também nas subjetividades, mostram a passagem de uma situação social sólida com instituições conservadoras e hierarquizadas, para uma nova ordem social que pautada na mudança constante atribui outro ritmo às relações sociais e de produção. Assim o Fausto de Goethe de acordo com autor representa as tensões que os indivíduos sofrem com o abalo das estruturas sólidas que agora se desmancham, mas não simplesmente ficam em ruínas, algumas somem para dar lugar a algo novo como se desfizessem no ar.

        O texto está subdividido em cinco itens e uma conclusão, neles são apresentadas as características que fazem dos ideais burgueses os promotores da modernidade, consequentemente, do capitalismo.

       O breve ensaio, aqui proposto para disciplina Educação e Pesquisa Sociológica, pretende com base no texto de Marshal Berman articular as transformações na sociedade sentidas em uma das instituições que promove a transmissão dos valores e que se torna um vetor do ideal burguês, a escola.

        A maneira de figurar as transformações na alegoria da solidez e desmanche no ar parece ser uma passagem muito breve ou rápida. No entanto, as características físicas de um material seguem uma ordem de acontecimentos, como no exemplo da água que em estado sólido, passa a líquida até se evaporar no ar. Um processo com início e fim que não acontece instantaneamente. Desta maneira, a passagem do sistema feudal em que trabalho, política e religião estavam muito ligados e solidificados, sofre o derretimento lento e gradual com novos questionamentos de ordem religiosa e política, que afetam a cultura da época com a inserção de uma nova classe, a burguesia, que por meio do trabalho procura criticar e justificar novos valores. As transformações deram sequência no âmbito da vida rural e urbana relacionadas aos sentidos do trabalho, seu espaço e modos de produção.

        No primeiro momento o artesão tinha em sua casa uma família que trabalhava unida, ou um local em que todo o processo de produção se articulava com a vida familiar. O derretimento da estrutura aconteceu com a implantação de novos espaços e equipamentos, as fábricas e o maquinário. Este degelo lento e gradual fez com que se produzisse mais em menos tempo e com menor investimento, os resultados foram produtos mais baratos do que a produção artesanal. Isso foi um fator que levou a não ser mais viável produzir por si, logo, o mesmo efeito é sentido na zona rural, fazendo com que as cidades sejam aglomerados de multidões que entram na nova esfera, o proletariado trabalha nas mais diversas fábricas.

Ao mesmo tempo, em que acontece o derretimento gradual, abalando aquilo que se conhecia como certo e verdadeiro, perfazendo a passagem de um “eu comunitário” para um “eu individualista” com novas perspectivas e visões de mundo, as mudanças no espaço urbano também podem ser encaradas como extraordinárias. As grandes construções, a pavimentação de estradas, as formas de comunicação, os transportes, a capacidade de mudar o curso de rios e etc., significam uma vida nova e de crescimento das capacidades da humanidade de realizar transformações também na geografia de uma área. Nesta dialética constante, as mudanças internas no homem afetam as mudanças externas do homem, que por sua vez alteram novamente no interno. No texto de Marshall Berman (1986, p. 88) ele diz que o “manifesto comunista expressa algumas das mais profundas percepções da cultura modernista e, em simultâneo, dramatiza algumas de suas mais profundas contradições internas”.

Apesar dos avanços e conquistas ressaltados, a diluição do sólido se dá no momento em que ao realizar seus empreendimentos os objetivos finais sejam sempre o acumulo de capital. O foco no acúmulo de capital provoca uma corrida desenfreada como no carro de Jagrená de Anthony Giddens (1991) que foge ao controle, não sendo capaz uma previsão dos resultados.

Este fim, o acúmulo de capital, mais que um meio, excluí o reconhecimento de títulos de nobreza ou de linhagem de sangue. Para a burguesia os novos valores são pautados no que é feito e não nas honrarias do passado. O reconhecimento de linhagem de sangue, patriarcal ou de títulos nobres não são validados, e outro ideal orienta o reconhecimento pessoal, o mérito (re)surge indicando os feitos no presente.

A diluição se completa no instante em que a instituição escolar passa a significar a porta do mérito e êxito pessoal. Anteriormente, os títulos de nobreza marcavam a posição social, agora os títulos acadêmicos demarcaram uma nova configuração social, a partir da valorização do esforço e realizações pessoais. A educação escolar passa a ser o meio que proporciona o conhecimento necessário para assumir determinada posição na sociedade supostamente garantindo qualificação necessária para o sucesso profissional. A escola passa a ser a instituição que melhor representa o que o individuo pode então fazer.



A instituição do mérito pessoal para reconhecimento no ideal burguês impulsiona um segundo efeito, a competição entre indivíduos e a necessidade de aperfeiçoamento constante. Anteriormente, o reconhecimento adquirido permanecia com o indivíduo até sua morte ou ao ser revogado por alguma razão de ordem “política”. Durante a diluição, o reconhecimento pessoal é feito nas realizações do presente, e as mesmas precisam ser revalidadas constantemente em novos resultados. Por esse motivo, a necessidade de aperfeiçoamento constante passa a representar esse ideal, pois as mudanças acontecem cada vez mais rápido, sendo importante acompanhá-las. Neste ímpeto o aperfeiçoamento e reconhecimento não são distribuídos de forma igualitária, portanto, o desejo de conquista pessoal faz o aperfeiçoamento servir como baliza para uma competição entre os homens. Todos passam a competir uns com os outros, mesmo em uma sala de aula onde o conhecimento é supostamente ofertado de forma universal, o objetivo está em passar no vestibular e atingir os melhores postos de trabalho, para isso alguns dedicam-se mais que outros em uma incansável procura por superar o adversário/colega ao lado.

O aperfeiçoamento constante do indivíduo e da sociedade esconde um fator de transformação tão cristalizado no século XXI, expresso na capacidade de inovar, ou como nas palavras de Berman uma autodestruição.

Não obstante, a verdade é que, como Marx o vê, tudo o que a sociedade burguesa constrói é construído para ser posto abaixo. Tudo o que é sólido – das roupas sobre nossos corpos aos teares e fábricas que as tecem, aos homens e mulheres que operam as máquinas, às casas e os bairros onde vivem os trabalhadores, às firmas e corporações que os exploram, às vilas e cidades, regiões inteiras e até mesmo as nações que as envolvem – tudo isso é feito para ser desfeito amanhã, despedaçado ou esfarrapado, pulverizado ou dissolvido, a fim de que possa ser reciclado ou substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante, sempre adiante, talvez para sempre, sob formas cada vez mais lucrativas. (BERMAN, 1986, p. 96)

Está maquinaria social pautada na inovação, remete a uma autodestruição de tudo aquilo construído. A mobília de uma residência, as paredes de um imóvel, os bens materiais diversos e o próprio individuo deve estar pronto a sofrer alterações, se transformar em algo novo e “melhor”. Este lema extrapola o aperfeiçoamento pessoal, sendo necessário aperfeiçoar as coisas no mundo exterior. Mais uma vez a escola tem papel fundamental na propagação deste ideal, pois a ciência é o instrumento de tal mudança. As pesquisas de materiais e novos procedimentos alimentam a chama que aquece aquilo que tenta se solidificar, significando uma obsolescência existencial para continuar a desenvolver e construir.

A ciência que ocupa lugar de destaque na pulverização dos valores burgueses atinge esta posição no momento em que o degelo incide sobre as crenças humanas que justificavam poderes sobrenaturais capazes de controlar a natureza. A descrença nos seres misticos, como um desencantamento do mundo, colocou a ciência no pedestal de autoridade reconhecida. O niilismo deu ao homem o poder de pôr si só controlar a natureza, por isso, Berman (1986) ressalta que o feiticeiro burguês de Marx descende do Fausto de Goethe, e também de outra figura literária que eletrizou a imaginação de seus contemporâneos: o Frankenstein de Mary Shelley, são dois personagens que representam o esforço dos poderes humanos em expandir-se através ciência e da racionalidade. Infelizmente, os resultados não significam o controle pleno das ações planejadas e projetadas, muitas vezes resultam em inúmeros horrores. Posso então entender, com base na leitura, que a modernidade é expressa no modernismo, como uma arte de criação, mas que em sua dialética produz injustiças, temores e a morte.

A descrença contribui para no espaço escolar ser mobilizado para implantação de uma escola laica, pois a mesma significava a solidez das crenças religiosas que norteavam a vida social anterior, estipulando o que deve ou não ser ensinado. Esta mudança favorece a ciência que então encontra sua morada permanente. A escola passa a ser um local de extrema importância, pois na história o grupo social que detinha o conhecimento se caracterizou como dominante. No projeto burguês envolve, niilismo, aperfeiçoamento, competição e mérito, o espaço escolar representa o vetor da ideologia e do objetivo da modernidade.

O degelo nas relações sociais e principalmente nas hierarquias sociais pode ser representado na nudez expressa por Marx. As roupas têm o corpo como inscrição de valores aceitos na sociedade. Os panos e tecidos nobres, indicavam um local de pertencimento e posição. Despir o corpo passa a significar a ausência de reconhecimento eclesiástico ou nobre, dando ao homem seu teor de natureza. Ao reconhecer a si mesmo como corpo nu e não coberto com a máscara de papel social, seria então capaz de chagar a realidade. Não vivendo mais de ilusões da máscara de identidade, pode então ter uma postura crítica e não mais de acomodado no consolidado. O homem desacomodado se despiu da religiosidade e das tradições do passado, se colocou como homem puro capaz de enfrentar as intemperes da natureza pensando coletivamente. Entendo, que se equipara a um pensamento contratualista, que na base se ampara na proteção do coletivo a partir do momento que o homem aceita sua real condição. E também se assemelha ao que J. J. Rousseau escreve sobre o bom selvagem, ao ser a sociedade que corrompe o homem, portanto quanto mais natural mais próximo da realidade.

A burguesia mobilizou os esforços no degelo das estruturas sociais que limitavam a ação do homem, que chegou ao extremo de desmanchá-lo no ar. As questões de autonomia pessoal fizeram o homem transmutar-se em mercadoria. Agora ele mesmo se vende no mercado sendo comprado pelo valor de sua honra, dignidade e mérito. Os valores do ideário burgues instituem um modo civilizado de ser, para pertencer você precisa ter. Ter acesso à informação, ter escolarização, ter feitos pessoais, ter bens que simbolizam o mérito, assim o individuo é medido e recebe um valor na sociedade ocidental de livre troca e livre competição.As velhas formas de honra e dignidade não morrem: são, antes, incorporadas ao mercado, ganham etiquetas de preço, ganham nova vida, enfim, como mercadorias” (BERMAN, 1986, p. 107). Novamente, a escola aparece como cenário para difundir estes valores, nos rótulos de alunos e na valorização de conteúdos, os quais possibilitam marcar dois grupos, os honrados e os medíocres.

Interessante é perceber que, ao mesmo tempo, em que a escola valorizou o ideal e a vida ativa burguesa, a mesma como uma instituição sólida sofreu com os efeitos do degelo e também se desmanchou no ar. A figura do professor que guardava uma aura santificada de mestre e transmissor de conhecimento se esvai com a perda do halo. Os professores agora também surgem como trabalhadores influenciados pelo mercado. O capitalismo torna a vida desencantada, neste sentido os professores que anteriormente recebiam respeito e honrarias na sociedade perdem tal representação, e em muitos casos são comparados a funcionários em uma linha de produção. No entanto, nenhum professor aceita ser comparado a um funcionário em uma fábrica. No Brasil, este fato é muito peculiar, e os professores, independente do grau de atuação, se reconhecem como pertencentes a classe média ou em alguns casos como intelectuais. Acabam por guardar o halo pessoal, no sentido de vocação e pertencimento a uma suposta classe média. Buscam não se caracterizar como trabalhadores assalariados por estarem identificados com a cultura valor aceita como definidora de distinção, se comparados a outros trabalhadores. Entretanto, Marshall Berman nos alerta que “tudo é modo de produção, mesmo a cultura, a burguesia controla os meios de produção da cultura, como em tudo o mais, e quem quer que pretenda criar deve operar em sua órbita de poder” (1986, p. 112). O sociólogo Pierre Bourdieu descreve melhor essa relação de reprodução da escola e seus mecanismos por meio do poder simbólico.


        Marx diz que todos agora se confrontam no mesmo patamar, a verticalidade se desmanchou e colocou todos no mesmo plano horizontal, com supostas chances iguais e condições de pôr si só conquistar os objetivos almejados de sempre se aperfeiçoar e desenvolver a humanidade, custe o que custar, pois, o retorno do investimento é sempre garantido. As mudanças não terminam aqui, mas o que anteriormente se fazia necessário com braços e pernas fortes, agora é feito por meio da exploração dos cérebros.

Vendendo-se peça por peça, eles vendem não apenas sua energia física, mas suas mentes, sua sensibilidade, seus sentimentos mais profundos, seus poderes visionários e imaginativos, virtualmente todo o seu ser. (BERMAN, 1986, p. 113)

Assim, eles só escreverão livros, pintarão quadros, descobrirão leis físicas ou históricas, salvarão vidas, se alguém munido de capital estiver disposto a remunerá-los. Mas as pressões da sociedade burguesa são tão fortes que ninguém os remunerará sem o correspondente retorno - istó é, sem que o seu trabalho não colabore, de algum modo, para incrementar o capital. (BERMAN, 1986, p. 112)

O ideal burguês, professado na capacidade de derreter estruturas sólidas, está organizado no mérito pessoal, no desejo de aperfeiçoamento, no espírito competitivo, no niilismo e no desencantamento de posições. Tudo canalizado para o desejo de progresso continuo, que no indivíduo fica representado na mobilidade e ascensão social. Estas ideias presentes no projeto de modernidade em conjunto com os valores burgueses transformaram e vem transformando a sociedade ocidental durante todo o século XX. A grande questão na atualidade está em questionar se o que foi sólido, derreteu e evaporou, se algum dia voltará a ser líquido e novamente sólido?

O que se pode garantir até aqui é que enquanto o conhecimento tiver um valor de troca valorizado na sociedade, a escola permanecerá como vetor do projeto futuro, representando os ideais do grupo então dominante.


Referências:

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: Marx, modernismo e modernização. In:___. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. SP: Companhia das Letras, 1986. p. 85-125.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. SP: Editora UNESP, 1991.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. SP: Martin claret, 2007.


Trabalho produzido na disciplina Educação e Pesquisa Sociológica – PGE 410131, ministrada pela Professora Dra. Ione Ribeiro Valle, semestre 2014-2.


A miopia social e o papel da educação

 


Nas últimas semanas, foi necessário atualizar meus óculos, avaliar o grau da miopia (enxergar longe) e astigmatismo (enxergar nem perto e nem longe). Trata-se de um procedimento que deve ser realizado com certa frequência por ter origem em uma doença degenerativa. Sua correção só pode acontecer com intervenção cirúrgica, em alguns casos com lentes de contato e, mais comumente, com o uso de óculos. 

Minhas falhas de visão foram observadas por uma dedicada professora quando eu tinha 11 anos. Escrita errada, leitura equivocada e olhos quase fechados ao dirigirem-se ao quadro dispararam o alerta. Alguns familiares usavam óculos, um histórico de doenças da visão existia, mas a família, no primeiro momento, preferia aceitar que os erros eram justificados por outros motivos reconhecidos hoje nas mais diversas síndromes e que, na época, facilmente eram atribuídos a um retardo, má vontade ou falta dela, tachando-me de adjetivos que identificavam os erros pessoais na escola. 

A partir da observação de uma professora sensível aos dilemas de seu estudante, uma nova realidade me foi apresentada. O desconforto dos óculos foi rapidamente superado pelos benefícios que proporcionavam. A pretensão em fazer esse breve relato é para destacar o papel dos professores que atuam sem estar restritos ao ensino do conteúdo, também dedicando atenção aos educandos de maneira singular. Um agradecimento deve ser feito a eles. A experiência com a atualização das lentes dos meus óculos possibilita, igualmente, pensar que a vida em sociedade, sua realidade, precisa de tempos em tempos passar por correção, para não ficarmos com um olhar desfocado, distorcido ou embaçado.

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http://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/a-miopia-social-e-o-papel-da-educacao/