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Socialização profissional, a inserção em uma comunidade de prática

 


         A veemência do tema se cristaliza a partir das atuações como profissional de segurança nos finais de semana em eventos noturnos na cidade de Florianópolis/SC. O olhar treinado, como descrito pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (2000, p. 19), durante o trabalho noturno instrumentalizava o pesquisador dando destaque a lugares, espaços e comportamentos marcados no ambiente festivo. Assim, sensibilizado pelas teorias estudadas na graduação de Ciências Sociais, as observações foram se aprofundando e descortinando a teia de relações construídas durante a dinâmica das festas. O trabalho prevê um olhar sobre os profissionais de segurança, a experiência pessoal em primeiro plano, a luz dos conceitos de comunidade de prática (LAVE; WENGER, 1991), saberes profissionais (DUBAR, 1997), e socialização profissional (PLAISANCE, 2003) (MELO; VALLE, 2013). A pergunta que se propõe a responder é: como acontece a aprendizagem dos agentes de seguranças para atuação em eventos noturnos?

As experiências vividas demostram incorporar um habitus que se faz reconhecido entre os profissionais de segurança e os clientes das casas noturnas. Uma internalização gradual de um sistema de códigos e símbolos partilhados a partir do reconhecimento de si e do outro quanto a posição social desempenhada nos eventos. Um processo de socialização externado na sociabilidade apresentada durante as interações construídas ao longo da vida. Dubar (1997) afirma que a identidade é produto de sucessivas socializações, sejam elas primárias, secundarias ou profissionais.

A diferenciação social presente no ambiente das casas noturnas, é sentida nos profissionais de segurança que na ambivalência de seu uniforme, possuem prerrogativas para limitar acessos e inibir desordem, como também frente aos estratos mais favorecidos marca sua função social subalterna. Agora a expressão: “sabe com quem está falando?”, deixa exposto os conflitos e hierarquias presentes na festa, ou no rito de autoridade – um traço sério e revelador de nossa vida social (DAMATTA, 1997, p. 184). Esta frase é algo que rapidamente o agente de segurança deve aprender a exercer resiliência.

Neste cenário, considero a equipe de segurança como uma comunidade de prática em que compartilham uma visão de mundo e conhecimentos característicos de uma socialização profissional. Posso dizer que inicio minha participação periférica legítima (LAVE; WENGER, 1991) no papel de segurança, tendo a oportunidade de transitar por diversos postos de trabalho na mecânica organizacional das casas noturnas. Tais postos abrangem do atendimento na portaria com informações e revista dos frequentadores, ao atendimento a camarotes, e no controle de acessos diversos a áreas reservadas para clientes, bem como para o fluxo de funcionários. Assim, o contato com clientes e funcionários é constante, o que possibilita descrever inúmeras formas de interação descritas em trabalhos anteriores. O recorte deste, centra-se na apresentação da inserção ou acesso ao campo, assim como o processo de aprendizagem-ação e de socialização profissional para o desempenho da função e atribuições de segurança.

Em meio ao caos, que o olhar a primeira vista pode identificar, com os inúmeros indivíduos curtindo o seu momento. Ao fazermos a aproximação, em outras palavras, ao nos situarmos no chão da festa ou do lado daqueles que a organizam, podemos visualizar muita ordem e controle para manter a harmonia. O controle das tensões mediante o choque das relações de poder e de hierarquias sociais presentes parece um caldeirão efervescente que se mantêm por valores e convenções construídas por aqueles que compartilham o espaço e seu sistema simbólico. Por esta razão o treinamento do segurança para festas noturnas, passa por um conhecimento, em certa medida, espontâneo e partilhado por meio da experiência e vivência em cada um dos ambientes mediante um saber profissional. Cada casa noturna, cada evento é distinto do outro, o cenário diferente guarda uma dinâmica própria a partir dos promotores da festa, dos organizadores, do tipo de música, dos patrocinadores, dos trabalhadores e dos clientes. Esta aprendizagem não surge no primeiro evento, mas na construção do metier de agente de segurança, ou no que Michel Maffesoli (2005)descreve como a “ambiência englobante”.



 Devemos entender este processo de socialização geral que engloba toda a vida, como constitutivo dos seres humanos como seres sociais (PLAISANCE, 2003, p. 2), ou melhor, profissionais.

A socialização profissional é um processo por meio do qual os indivíduos constroem valores, atitudes, conhecimentos e habilidade que lhes permitem e justificam ser e estar em uma determinada profissão. É um processo de concretização dos ideais profissionais. Sob um aspecto mais objetivo, a socialização profissional constitui-se no processo de traduzir em práticas profissionais os conhecimentos inerentes à profissão. E, sob o aspecto subjetivo, constitui-se na efetiva identificação, adesão à profissão e ao outro, pela compreensão do mundo no qual ele está e por tornar tal mundo o seu próprio. Muito além de qualquer circunscrição, é um modo de consolidação de uma identidade individual e coletiva. (MELO; VALLE, 2013, p. 100).


O primeiro momento de inserção como acontece através de um convite pautado em determinadas características físicas e de necessidades pessoais objetivas. Este contato traz um aprendizado inicial, o mesmo começa com várias orientações do Robertinho1, segurança experiente e naquela época com 3 anos de atuação. Em seguida, um discurso disciplinador contrário à brutalidade física, um domínio e controle quanto às agressões, mesmo quando a essência da função estimule a masculinidade e a firmeza nas ações. Sem estar em um espaço legítimo de aprendizagem com objetivo de aquisição de um certificado, a experiência de ouvir o discurso da comunidade começa a dar conformidade na maneira de atuar. Podemos destacar que a socialização é um deixar-se moldar, um deixar-se forjar por determinado grupo de pertença, fazendo com que as propensões individuais sejam abafadas pelas do grupo (MELO; VALLE, 2013, p. 83).

A relação com outros seguranças se dá enquanto acontece a interação com o grupo de mesmo perfil2. Isso possibilita conversar e sem perceber participar da aprendizagem. O fato de se comentar sobre festas passadas, relatar ações, procedimentos, e contar parte de sua experiência, serve para o aprendizado do novato. Ninguém fica sobre tutela de um veterano, na verdade, a inserção na equipe o faz receber determinados privilégios e informações de como tratar determinado grupo ou cliente frequentador. De acordo com Lave e Wenger (1991) a prática improvisada cria um currículo de ensinamento3, em que, no caso, as várias experiências e postos de atuação na casa noturna promovem o aprendizado do novato até atingir as posições de privilégios e coordenação. Acontece então um processo de construção de um conhecimento e de confiança mútuo entre os colegas, trazendo um respaldo para atuação no empoderamento pelo tempo de serviço e vivência. Valores que em uma comunidade de prática pautada na masculinidade, lhe são mais caros do que a simples comprovação de um currículo de aprendizagem.

O acesso pleno e efetivo a comunidade, além de liberar para conhecer mais a fundo as relações imbricadas, também trouxe um envolvimento maior do pesquisador com o grupo profissional. Em outras palavras, também sou afetado pelo campo, enquanto adquiro gosto pela música eletrônica, pelo consumo de energético, o hábito de mascar chicletes, no interesse por campeonatos de artes marciais mistas e na assimilação de uma postura corporal. Estes são fatores que conformam uma identidade de grupo, a comunidade com suas práticas que se estendem para além do meio onde são realizadas. Esse movimento viabiliza ser afetado pela comunidade, bem como, de afetá-la. Em outras palavras, acontece a efetivação da interiorização do processo de socialização que agora pode ser observada através de sua externalização.



 A aprendizagem periférica legitima contribui para pensar a maneira em que um conhecimento é legitimado por meio da prática e não só de um currículo teórico, embora também respaldado por ele. A vivência passa a ser um processo de ensino e preparação de profissionais para atuar como seguranças. Muitos membros da comunidade de prática não sabem que estão em aprendizagem. Porém, por meio dos discursos, práticas, conversas, comportamentos e trocas de experiências, muitas vezes não intencionais, possibilitam a formação atual dos agentes de segurança das melhores casas noturnas do Sul do Brasil. A aquisição dos códigos, valores e regras de convivência possibilita ao segurança ter maior autonomia da vontade a partir do entendimento da moral compartilhada no ambiente. A passagem de novato para veterano com acesso pleno a comunidade de prática requer um currículo de ensinamento, um processo mediado por relações, conhecimentos e comportamentos construídos durante a dinâmica dos eventos.

O metier de agente de segurança, embora reconhecidamente marcado na expressão corporal, envolve muito mais do que a postura ostensiva, o habitus é internalizado paulatinamente por meio da troca e na interação constante entre colegas e clientes que participam dos eventos. O conceito de socialização profissional instaura subsídios para melhor compreensão do processo contínuo de assimilação da moral presente nos momentos festivos em casas noturnas. Desta maneira, podemos identificar que a socialização acontece ligada a uma instituição em um tempo, um espaço e segundo os grupos sociais (PAISANCE, 2003, p. 5).


Referencias:

DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Porto/Portugal: Porto Editora, 1997.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e escrever. In:___. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; SP: Editora UNESP, 2000.

DA CONCEIÇÃO, Daniel M. Marretadas repetitivas: a continuidade e a remodelação de valores sociais em três casas noturnas de Florianópolis. Mosaico Social, v.06, 2013. p.300 – 317.

DAMATTA, Roberto. Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre individuo e pessoa no Brasil. In:___. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. RJ: Rocco, 1997. p. 179-248.

LAVE, Jean; WENGER, Etienne. Aprendizaje situado: participación periférica legítima. Tradução: Miguel Espíndola e Carlos Alfaro. New York: Cambridge University Press. 1991.

MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto alegre: sulina, 2005.

MELO, Marilândes Mol Ribeira; VALLE, Ione Ribeiro. Socialização e socialização profissional: interface entre forjar e negociar outro ser. Roteiro, v. 38, 2013. p. 79-102.

PLAISANCE, Éric. Socialização: modelo de inclusão ou modelo de interação? Revista PerCursos. Centro de Ciências da Educação. Florianópolis: UDESC, v 4, n. 1, out/2003. p. 177-193.


Notas:

1Nome fictício. Segurança casado, pai de três filhos, idade de 40 anos, natural do Rio Grande do Sul. Na época trabalhava como operador de telemarketing. Atualmente, finaliza o curso técnico de enfermagem, trabalha em um posto de saúde do município como contratado e nunca fez o curso de vigilante.

2Os critérios para escolha dos seguranças para cada grupo estão pautados em características fenotípicas. Na portaria irão os de menor estatura e mais franzinos. Para pista os “pitbulls”, geralmente com maior porte físico e com habilidades em luta e imobilização, são a linha de frente, são aqueles colocados para o confronto com a responsabilidade de retirar clientes encrenqueiros de dentro da casa. O grupo escolhido para o camarote possui uma distinção, pode misturar ambas as características fenotípicas, centrando destaque nas ações e no comportamento mais paciente durante situações inconvenientes, supostamente maior educação no trato e na capacidade de mediação. Características aprendidas pela experiência, mas a postura firme na atuação também é requisito importante.

3“Un curriculum de aprendizaje consiste en oportunidades situadas (incluyendo así ejemplares de varias clases a menudo pensados como “metas”) para el despliegue improvisado de práctica nueva. Un curriculum de aprendizaje es un campo de recursos de aprendizaje de la práctica diaria visto desde la perspectiva de los aprendices. Un curriculum de enseñanza, por el contrario, se construye para la instrucción de los novatos” (LAVE; WENGER, 1991).


 Trabalho produzido na disciplina Educação e Pesquisa Sociológica – PGE 410131, ministrada pela Professora Dra. Ione Ribeiro Valle, semestre 2014-2.


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