O filósofo Marshall Berman (1940-2013) em seu livro Tudo que é sólido desmancha no ar (1986), faz apontamentos sobre a modernidade, identificando no Manifesto do partido comunista (2007) de Marx e Engels, a presença de um caráter de modernização e de modernismo. O autor descreve como modernização as transformações políticas e econômicas, e como modernismo as mudanças na arte, na sensibilidade e na cultura. Elas simbolizam o que acontece com a sociedade ocidental durante os séculos XVIII, XIX e meados do XX.
As mudanças na ordem macro e também nas subjetividades, mostram a passagem de uma situação social sólida com instituições conservadoras e hierarquizadas, para uma nova ordem social que pautada na mudança constante atribui outro ritmo às relações sociais e de produção. Assim o Fausto de Goethe de acordo com autor representa as tensões que os indivíduos sofrem com o abalo das estruturas sólidas que agora se desmancham, mas não simplesmente ficam em ruínas, algumas somem para dar lugar a algo novo como se desfizessem no ar.
O texto está subdividido em cinco itens e uma conclusão, neles são apresentadas as características que fazem dos ideais burgueses os promotores da modernidade, consequentemente, do capitalismo.
O breve ensaio, aqui proposto para disciplina Educação e Pesquisa Sociológica, pretende com base no texto de Marshal Berman articular as transformações na sociedade sentidas em uma das instituições que promove a transmissão dos valores e que se torna um vetor do ideal burguês, a escola.
A maneira de figurar as transformações na alegoria da solidez e desmanche no ar parece ser uma passagem muito breve ou rápida. No entanto, as características físicas de um material seguem uma ordem de acontecimentos, como no exemplo da água que em estado sólido, passa a líquida até se evaporar no ar. Um processo com início e fim que não acontece instantaneamente. Desta maneira, a passagem do sistema feudal em que trabalho, política e religião estavam muito ligados e solidificados, sofre o derretimento lento e gradual com novos questionamentos de ordem religiosa e política, que afetam a cultura da época com a inserção de uma nova classe, a burguesia, que por meio do trabalho procura criticar e justificar novos valores. As transformações deram sequência no âmbito da vida rural e urbana relacionadas aos sentidos do trabalho, seu espaço e modos de produção.
No primeiro momento o artesão tinha em sua casa uma família que trabalhava unida, ou um local em que todo o processo de produção se articulava com a vida familiar. O derretimento da estrutura aconteceu com a implantação de novos espaços e equipamentos, as fábricas e o maquinário. Este degelo lento e gradual fez com que se produzisse mais em menos tempo e com menor investimento, os resultados foram produtos mais baratos do que a produção artesanal. Isso foi um fator que levou a não ser mais viável produzir por si, logo, o mesmo efeito é sentido na zona rural, fazendo com que as cidades sejam aglomerados de multidões que entram na nova esfera, o proletariado trabalha nas mais diversas fábricas.
Ao mesmo tempo, em que acontece o derretimento gradual, abalando aquilo que se conhecia como certo e verdadeiro, perfazendo a passagem de um “eu comunitário” para um “eu individualista” com novas perspectivas e visões de mundo, as mudanças no espaço urbano também podem ser encaradas como extraordinárias. As grandes construções, a pavimentação de estradas, as formas de comunicação, os transportes, a capacidade de mudar o curso de rios e etc., significam uma vida nova e de crescimento das capacidades da humanidade de realizar transformações também na geografia de uma área. Nesta dialética constante, as mudanças internas no homem afetam as mudanças externas do homem, que por sua vez alteram novamente no interno. No texto de Marshall Berman (1986, p. 88) ele diz que o “manifesto comunista expressa algumas das mais profundas percepções da cultura modernista e, em simultâneo, dramatiza algumas de suas mais profundas contradições internas”.
Apesar dos avanços e conquistas ressaltados, a diluição do sólido se dá no momento em que ao realizar seus empreendimentos os objetivos finais sejam sempre o acumulo de capital. O foco no acúmulo de capital provoca uma corrida desenfreada como no carro de Jagrená de Anthony Giddens (1991) que foge ao controle, não sendo capaz uma previsão dos resultados.
Este fim, o acúmulo de capital, mais que um meio, excluí o reconhecimento de títulos de nobreza ou de linhagem de sangue. Para a burguesia os novos valores são pautados no que é feito e não nas honrarias do passado. O reconhecimento de linhagem de sangue, patriarcal ou de títulos nobres não são validados, e outro ideal orienta o reconhecimento pessoal, o mérito (re)surge indicando os feitos no presente.
A diluição se completa no instante em que a instituição escolar passa a significar a porta do mérito e êxito pessoal. Anteriormente, os títulos de nobreza marcavam a posição social, agora os títulos acadêmicos demarcaram uma nova configuração social, a partir da valorização do esforço e realizações pessoais. A educação escolar passa a ser o meio que proporciona o conhecimento necessário para assumir determinada posição na sociedade supostamente garantindo qualificação necessária para o sucesso profissional. A escola passa a ser a instituição que melhor representa o que o individuo pode então fazer.
A instituição do mérito pessoal para reconhecimento no ideal burguês impulsiona um segundo efeito, a competição entre indivíduos e a necessidade de aperfeiçoamento constante. Anteriormente, o reconhecimento adquirido permanecia com o indivíduo até sua morte ou ao ser revogado por alguma razão de ordem “política”. Durante a diluição, o reconhecimento pessoal é feito nas realizações do presente, e as mesmas precisam ser revalidadas constantemente em novos resultados. Por esse motivo, a necessidade de aperfeiçoamento constante passa a representar esse ideal, pois as mudanças acontecem cada vez mais rápido, sendo importante acompanhá-las. Neste ímpeto o aperfeiçoamento e reconhecimento não são distribuídos de forma igualitária, portanto, o desejo de conquista pessoal faz o aperfeiçoamento servir como baliza para uma competição entre os homens. Todos passam a competir uns com os outros, mesmo em uma sala de aula onde o conhecimento é supostamente ofertado de forma universal, o objetivo está em passar no vestibular e atingir os melhores postos de trabalho, para isso alguns dedicam-se mais que outros em uma incansável procura por superar o adversário/colega ao lado.
O aperfeiçoamento constante do indivíduo e da sociedade esconde um fator de transformação tão cristalizado no século XXI, expresso na capacidade de inovar, ou como nas palavras de Berman uma autodestruição.
Não obstante, a verdade é que, como Marx o vê, tudo o que a sociedade burguesa constrói é construído para ser posto abaixo. Tudo o que é sólido – das roupas sobre nossos corpos aos teares e fábricas que as tecem, aos homens e mulheres que operam as máquinas, às casas e os bairros onde vivem os trabalhadores, às firmas e corporações que os exploram, às vilas e cidades, regiões inteiras e até mesmo as nações que as envolvem – tudo isso é feito para ser desfeito amanhã, despedaçado ou esfarrapado, pulverizado ou dissolvido, a fim de que possa ser reciclado ou substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante, sempre adiante, talvez para sempre, sob formas cada vez mais lucrativas. (BERMAN, 1986, p. 96)
Está maquinaria social pautada na inovação, remete a uma autodestruição de tudo aquilo construído. A mobília de uma residência, as paredes de um imóvel, os bens materiais diversos e o próprio individuo deve estar pronto a sofrer alterações, se transformar em algo novo e “melhor”. Este lema extrapola o aperfeiçoamento pessoal, sendo necessário aperfeiçoar as coisas no mundo exterior. Mais uma vez a escola tem papel fundamental na propagação deste ideal, pois a ciência é o instrumento de tal mudança. As pesquisas de materiais e novos procedimentos alimentam a chama que aquece aquilo que tenta se solidificar, significando uma obsolescência existencial para continuar a desenvolver e construir.
A ciência que ocupa lugar de destaque na pulverização dos valores burgueses atinge esta posição no momento em que o degelo incide sobre as crenças humanas que justificavam poderes sobrenaturais capazes de controlar a natureza. A descrença nos seres misticos, como um desencantamento do mundo, colocou a ciência no pedestal de autoridade reconhecida. O niilismo deu ao homem o poder de pôr si só controlar a natureza, por isso, Berman (1986) ressalta que o feiticeiro burguês de Marx descende do Fausto de Goethe, e também de outra figura literária que eletrizou a imaginação de seus contemporâneos: o Frankenstein de Mary Shelley, são dois personagens que representam o esforço dos poderes humanos em expandir-se através ciência e da racionalidade. Infelizmente, os resultados não significam o controle pleno das ações planejadas e projetadas, muitas vezes resultam em inúmeros horrores. Posso então entender, com base na leitura, que a modernidade é expressa no modernismo, como uma arte de criação, mas que em sua dialética produz injustiças, temores e a morte.
A descrença contribui para no espaço escolar ser mobilizado para implantação de uma escola laica, pois a mesma significava a solidez das crenças religiosas que norteavam a vida social anterior, estipulando o que deve ou não ser ensinado. Esta mudança favorece a ciência que então encontra sua morada permanente. A escola passa a ser um local de extrema importância, pois na história o grupo social que detinha o conhecimento se caracterizou como dominante. No projeto burguês envolve, niilismo, aperfeiçoamento, competição e mérito, o espaço escolar representa o vetor da ideologia e do objetivo da modernidade.
O degelo nas relações sociais e principalmente nas hierarquias sociais pode ser representado na nudez expressa por Marx. As roupas têm o corpo como inscrição de valores aceitos na sociedade. Os panos e tecidos nobres, indicavam um local de pertencimento e posição. Despir o corpo passa a significar a ausência de reconhecimento eclesiástico ou nobre, dando ao homem seu teor de natureza. Ao reconhecer a si mesmo como corpo nu e não coberto com a máscara de papel social, seria então capaz de chagar a realidade. Não vivendo mais de ilusões da máscara de identidade, pode então ter uma postura crítica e não mais de acomodado no consolidado. O homem desacomodado se despiu da religiosidade e das tradições do passado, se colocou como homem puro capaz de enfrentar as intemperes da natureza pensando coletivamente. Entendo, que se equipara a um pensamento contratualista, que na base se ampara na proteção do coletivo a partir do momento que o homem aceita sua real condição. E também se assemelha ao que J. J. Rousseau escreve sobre o bom selvagem, ao ser a sociedade que corrompe o homem, portanto quanto mais natural mais próximo da realidade.
A burguesia mobilizou os esforços no degelo das estruturas sociais que limitavam a ação do homem, que chegou ao extremo de desmanchá-lo no ar. As questões de autonomia pessoal fizeram o homem transmutar-se em mercadoria. Agora ele mesmo se vende no mercado sendo comprado pelo valor de sua honra, dignidade e mérito. Os valores do ideário burgues instituem um modo civilizado de ser, para pertencer você precisa ter. Ter acesso à informação, ter escolarização, ter feitos pessoais, ter bens que simbolizam o mérito, assim o individuo é medido e recebe um valor na sociedade ocidental de livre troca e livre competição. “As velhas formas de honra e dignidade não morrem: são, antes, incorporadas ao mercado, ganham etiquetas de preço, ganham nova vida, enfim, como mercadorias” (BERMAN, 1986, p. 107). Novamente, a escola aparece como cenário para difundir estes valores, nos rótulos de alunos e na valorização de conteúdos, os quais possibilitam marcar dois grupos, os honrados e os medíocres.
Interessante é perceber que, ao mesmo tempo, em que a escola valorizou o ideal e a vida ativa burguesa, a mesma como uma instituição sólida sofreu com os efeitos do degelo e também se desmanchou no ar. A figura do professor que guardava uma aura santificada de mestre e transmissor de conhecimento se esvai com a perda do halo. Os professores agora também surgem como trabalhadores influenciados pelo mercado. O capitalismo torna a vida desencantada, neste sentido os professores que anteriormente recebiam respeito e honrarias na sociedade perdem tal representação, e em muitos casos são comparados a funcionários em uma linha de produção. No entanto, nenhum professor aceita ser comparado a um funcionário em uma fábrica. No Brasil, este fato é muito peculiar, e os professores, independente do grau de atuação, se reconhecem como pertencentes a classe média ou em alguns casos como intelectuais. Acabam por guardar o halo pessoal, no sentido de vocação e pertencimento a uma suposta classe média. Buscam não se caracterizar como trabalhadores assalariados por estarem identificados com a cultura valor aceita como definidora de distinção, se comparados a outros trabalhadores. Entretanto, Marshall Berman nos alerta que “tudo é modo de produção, mesmo a cultura, a burguesia controla os meios de produção da cultura, como em tudo o mais, e quem quer que pretenda criar deve operar em sua órbita de poder” (1986, p. 112). O sociólogo Pierre Bourdieu descreve melhor essa relação de reprodução da escola e seus mecanismos por meio do poder simbólico.
Vendendo-se peça por peça, eles vendem não apenas sua energia física, mas suas mentes, sua sensibilidade, seus sentimentos mais profundos, seus poderes visionários e imaginativos, virtualmente todo o seu ser. (BERMAN, 1986, p. 113)
Assim, eles só escreverão livros, pintarão quadros, descobrirão leis físicas ou históricas, salvarão vidas, se alguém munido de capital estiver disposto a remunerá-los. Mas as pressões da sociedade burguesa são tão fortes que ninguém os remunerará sem o correspondente retorno - istó é, sem que o seu trabalho não colabore, de algum modo, para incrementar o capital. (BERMAN, 1986, p. 112)
O ideal burguês, professado na capacidade de derreter estruturas sólidas, está organizado no mérito pessoal, no desejo de aperfeiçoamento, no espírito competitivo, no niilismo e no desencantamento de posições. Tudo canalizado para o desejo de progresso continuo, que no indivíduo fica representado na mobilidade e ascensão social. Estas ideias presentes no projeto de modernidade em conjunto com os valores burgueses transformaram e vem transformando a sociedade ocidental durante todo o século XX. A grande questão na atualidade está em questionar se o que foi sólido, derreteu e evaporou, se algum dia voltará a ser líquido e novamente sólido?
O que se pode garantir até aqui é que enquanto o conhecimento tiver um valor de troca valorizado na sociedade, a escola permanecerá como vetor do projeto futuro, representando os ideais do grupo então dominante.
Referências:
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: Marx, modernismo e modernização. In:___. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. SP: Companhia das Letras, 1986. p. 85-125.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. SP: Editora UNESP, 1991.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. SP: Martin claret, 2007.
Trabalho produzido na disciplina Educação e Pesquisa Sociológica – PGE 410131, ministrada pela Professora Dra. Ione Ribeiro Valle, semestre 2014-2.
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