A trajetória de Pierre Bourdieu, de origem interiorana possibilitou
ver o que os outros não veem (VALLE, 2007). O distanciamento de sua
origem do interior da França e o mundo intelectual acadêmico marcou
sua carreira como um diferencial. Ele compreendia que os incômodos
que sentia durante entrevistas e palestras eram internalizações
adquiridas durante sua socialização, o que remetia a um estrato
social não treinado a oralidade e de articulação em público, mas, ao mesmo tempo, o seu sentimento de vergonha social gerava um desejo
de compreender e denunciar as situações opressoras (VALLE, 2007).
Pierre Bourdieu como herdeiro da tradição durkheimiana e maussiana
na França, procura fazer a Sociologia uma ciência não só
positivista. Almeja romper com a ideia de fragmentação do
conhecimento e da construção de especialistas, assim se tornava um
transgressor das fronteiras acadêmicas (LAHIRE, 2002). Acredita em
métodos claros de análise independente de serem legitimados em uma
determinada área de estudos, assim supera os limites das disciplinas
e suas fronteiras.
Como um Cientista Social Bourdieu transitava entre as áreas alegando
que determinada ferramenta metodológica quando usada de maneira
adequada serviria para auxiliar a análise do objeto proposto. Esta
mesma ferramenta não poderia ser encarada como fixa de determinada
disciplina, mas um método para aquisição e análise de dados, capaz
de apontar novos caminhos quando utilizados de maneira rigorosa. O
sociólogo especialista não seria capaz de perceber as relações
existentes no campo, não conseguiria ter a capacidade de manter os
olhos abertos para o novo, para o aperfeiçoamento de sua prática
(BOURDIEU, 2001).
O texto da Ione Valle (2007) mostra o sociólogo Bourdieu idealizando
a sociologia como uma ciência capaz de não só interpretar mais
desvelar as práticas sociais. O sociólogo deve se tornar um
profissional apto a usar as variadas ferramentas metodológicas com
rigor. Deve ter cuidado com o senso comum e um senso comum douto
(BOURDIEU, 2001). Isto é, faz uma crítica aos modelos hegemônicos
dentro da academia, autores, temas e interpretações que muitas
vezes cegam os novos pesquisadores que incorporam um habitus
acadêmico. Este cegar pode ser realizado pelo senso comum douto
que em muitos casos apenas reproduz explicações. Para não
corrermos este risco propõe uma Sociologia da Sociologia, uma
análise da própria disciplina revelando relações e interesses por
trás dos gostos por determinados objetos de pesquisa (BOURDIEU,
2001). O esporte como campo de estudo no contexto em que Bourdieu se
encontrava pode ser encarado como um assunto periférico ou marginal
que não mereceria muita atenção na época. Como um Cientista
Social questionador, sua subversão ou heresia se cristalizava na
alcunha de tomar temas periféricos e mostrar sua importância para o
entendimento de ações e o conhecimento da prática social.
No exercício proposto junto à disciplina, somos instigados a
ponderar como as primeiras leituras ‘de’ e ‘sobre’ Bourdieu
ajudam a pensar o objeto de pesquisa. O autor devido sua extensa obra
relacionada ao sistema de ensino, a escolarização e ao desporto,
permite não só aproximação, mas o uso de categorias como campo,
habitus, poder simbólico, capital etc. Seus estudos ajudam a
perceber as transformações sofridas na passagem dos jogos para o
esporte, o momento de esportivização que culmina com aquilo que
atualmente reconhecemos como esporte de alto rendimento.
Hoje o que entendemos como esporte, no primeiro momento tem sua
essência relacionada ao jogo praticado em festividades. Encarado
como atividade lúdica, sofre alteração de sentido, passando, em
meados do século XIX, a designar atividade corporal com caráter
competitivo, e que durante o século XX se intensifica no alto
rendimento. O principal responsável por essa mudança foi o início
de uma nova apropriação, que ocorre na incorporação de algumas
atividades ou exercícios nas public schools, escolas
elitistas da Inglaterra, onde o esporte passa a receber um novo
caráter de utilidade.
Parece indiscutível que a
passagem do jogo ao esporte propriamente dito tenha se realizado nas
grandes escolas reservadas às elites da sociedade burguesa, nas
public schools
inglesas, onde os filhos das famílias da aristocracia ou da grande
burguesia retomaram alguns jogos populares, isto é, vulgares,
impondo-lhes uma mudança de significado e de função [...]
(BOURDIEU, 1983, p. 139).
Os jogos transformados em modalidades esportivas são agora
considerados de elite, e a ela pertencente, recebem sua carga de
utilidade, são vistos como formadores de caráter e estimuladores de
saúde, bem como de aptidões necessárias para o convívio em
sociedade e gestão de negócios futuros. Além de ser ótima
oportunidade para os jovens alunos extravasarem suas energias. Sua
utilidade passa a ser valorizada por não envolver grande soma de
investimento financeiro para sua realização (BOURDIEU, 1983, p.
146). Assim o esporte pode ser encarado como uma estrutura
estruturante fomentando uma estrutura estruturada capaz de ser
incorporada no sujeito (BOURDIEU, 2001, p. 8). Desta forma, uma
habitus se constitui junto à classe dominante, e que
posteriormente atinge as classes populares construindo uma realidade
pautada em um poder simbólico que transpassa o corpo e o uso do
mesmo.
O futebol no Brasil ganha notoriedade durante os anos 30, junto ao
projeto do Estado Novo. Sua representatividade foi construída
concomitantemente a imagem de país moderno e multirracial. A
temática para estudo desenvolvido na dissertação trata do futebol,
mas não dele propriamente. Procura compreender as relações
envolvidas na formação de atletas em dois clubes de futebol
profissional. Inúmeros jovens de várias partes do Brasil se
aventuram na carreira futebolística, os meios de comunicação e o
senso comum descrevem que o desejo de ascensão e mobilidade social
são os motivos objetivados para organização de um projeto
familiar. Segundo Bourdieu, se deve avançar na análise relacional
dos diversos interesses intrínsecos ao campo percebendo os embates e
as forças de poder existentes. Ao apresentar o estudante-atleta,
jovem que se dedica a formação esportiva e a escolarização, posso
perceber que o mesmo está na intersecção entre dois campos, o
campo futebolístico e o campo escolar.
O campo futebolístico possui vários atores em um embate constante
de força. Na concepção inicial o jogador possui o capital físico
e ausência de capital econômico, sendo de certa maneira, conduzido
para o esporte que lhe incute a possibilidade de ascender
socialmente. Orbitando ao jovem no meio esportivo encontramos
elementos como: (1) a família; (2) a estrutura do clube e o quadro
profissional com dirigentes e técnicos que percebem o potencial de
investimento, pois a lógica capitalista permeia a sua relação
desde sua aprovação para categorias de base; (3) empresários como
caçadores de talentos que investem na possibilidade de gerenciar a
carreira dos jovens atletas, transformando a atividade lúdica em
trabalho remunerado e de vínculos contratuais; (4) as grandes
empresas que desejam vincular suas marcas a “heróis” modernos,
estimulando o consumo de seus produtos; (5) a imprensa que promove e
ganha com o futebol, pois atinge as massas de espectadores ávidos
por informação e (6) os torcedores que mobilizam o clubismo
identificando o jogador com a suas cores.
Não apenas estes seis elementos orbitam o jogador, mas podemos
enumerar outros ou mesmo desdobrar os elementos já citados, mas
neste trabalho focalizamos estes como principais. Bourdieu (1983, p.
142) descreve que este sistema ou o espaço é repleto por lutas
constantes na disputa pelo monopólio tanto da prática, como da
teoria existente sobre esporte e suas aplicações. O que deve ser
percebido é a variedade de relações presentes no indivíduo e na
prática esportiva por ele desenvolvida.
O projeto familiar envolve todos os membros do grupo, em muitos casos
acontece a liberação de um indivíduo para formação esportiva
enquanto os outros suprem as necessidades familiares. Estudos mostram
que em muitos casos o jovem jogador é o filho mais novo da família,
a qual investe todos os recursos disponíveis em seu treinamento e
permanência no clube. A afirmação de Bourdieu sobre capital físico
demonstra uma maneira de fugir do processo de escolarização que
passa a ser única forma de ascensão para os meninos.
(...) a carreira esportiva,
(...) representa uma das únicas vias de ascensão social para
crianças das classes dominadas: o mercado esportivo está para o
capital físico dos meninos assim como os concursos de beleza e as
profissões as quais eles dão acesso estão para o capital físico
das meninas. (BOURDIEU, 1983, p. 147)
A demarcação de capital físico envolve as características para o
desenvolvimento da atividade esportiva. A escola requer outro tipo de
capital, um cultural, que em muitos casos não se relaciona ao
contexto e aprendizado familiar. As exigências acadêmicas não
mobilizam o jovem atleta a ter maior desejo de estudar. As
dificuldades nos bancos escolares e seu conteúdo são promotores de
um ânimo ainda maior de galgar sucesso em uma atividade que guarda
no imaginário uma prática divertida. O desafio está em receber um
jovem que não vê interesse na escola, pois seus títulos e
certificados tendem a não ter importância para sua consolidação
profissional, ao contrário de outros alunos trabalhadores e que os
certificados garantem melhores postos de trabalho. A família ao
dedicar atenção na esperança de ascensão social, através de uma
prática que desconsidera o capital cultural para afirmação e
prestígio. Entra no que Bourdieu apresenta como uma lógica da
indústria. Isto é, a atitude presente de apenas pensar em
aperfeiçoar-se é o facilitador para ser recrutado, pois, se
harmoniza com as exigências da profissionalização. Acarretando o
desenvolvimento “da racionalização de preparação quanto da
execução do exercício esportivo imposto pela maximização da
eficácia” (BOURDIEU, 1983, p. 147).
As percepções sobre relações no campo esportivo foram estudadas
anteriormente (MEZZAROBA, DA CONCEIÇÃO, 2014), agora, a proposta é
dar ênfase na escola e entender as relações existentes neste
espaço de poder simbólico. As interações entre não-atletas,
professores e atletas demonstra como a estrutura escolar pode excluir
jovens focados em outra atividade profissional, bem como, afetar os
que se dedicam plenamente a ela. O foco relacional descrito por
Bourdieu dentro deste campo de poder possibilita uma objetivação
dos embates e tensões existentes neste espaço. Um cenário amplo
repleto de representações carregadas por hierarquias e interesses.
Muitos dos jovens são oriundos de várias cidades brasileiras, a
inserção no futebol significa separação da família e de suas
relações sociais primárias, o clube significa uma rotina de
treinamento, a escola no que lhe concerne, um local de interação com outros
sujeitos se coloca distante a medida que as exigências de um saber
cultivado não condizem com a formação que os jovens almejam. A
cultura legitima exige a avaliação constante do desempenho destes
jovens, sua rotina flexibilizada os diferencia de alunos com maior
tempo para estudos, logo são considerados como ‘desviantes’,
pois carregam um duplo distanciamento da escola. O primeiro que
normalmente a escola impõe as classes não cultivadas (CATANI,
2002), e o segundo, o desinteresse na escolarização em comparação
com outros alunos os faz recuar ainda mais fazendo-os receber
acusações e rótulos estereotipados.
Ao ponderarmos com Bourdieu uma proposta de falar sobre esporte,
principalmente de futebol não parece ser algo simples, primeiro
pelas inúmeras interpretações de senso comum que buscam
deslegitimar o conhecimento analítico do mesmo. Todos falam com
propriedade sobre futebol, é um tema muito caro aos amantes da
modalidade. Encontramos livros, crônicas em revistas e jornais,
debates em televisão e rádio, rodas de bar e no trabalho as mais
diversas explicações para paixão, sucesso e interesses pelo
futebol. No meio acadêmico também encontramos doutos e
núcleos de discussão que visam sua legitimação em contínuas
produções que valorizam o grupo. Para estudar o futebol a proposta
do intelectual deve ser a de procurar o relacional, aquilo que no
campo irá aflorar desde que tenha uma postura de rigor com um olhar
pronto a apreender o novo. E que segundo Lahire (2002), o intelectual
Bourdieu além de mostrar uma via possível para fugir de repetições
possui uma obra que também não é fechada em si mesmo, ela autoriza
ser questionada, e mais que isso abre portas para maior utilização
de conceitos e desenvolvimento das categorias (LAHIRE, 2002, p. 52).
Referencias:
BOURDIEU,
Pierre. Como é possível ser esportivo. In:___. Questões
de Sociologia. RJ:
Ed. Marco Zero, 1983.
_____.
O poder simbólico.
RJ: Bertrand Brasil, 2001. p. 17-58.
CATANI,
A. M. A sociologia
da educação de Pierre Bourdieu
(ou como um autor se torna indispensável ao nosso regime de
leituras). In:___. Educação e Sociedade. Dossiê “Ensaios sobre
Pierre Bourdieu”, Ano XXIII, n. 78, abr/2002. p. 57-75.
LAHIRE,
B. Reprodução ou
prolongamentos críticos?
In:___. Educação e Sociedade. Dossiê “Ensaios sobre Pierre
Bourdieu”, Ano XXIII, n. 78, abr/2002. p. 37-55.
MEZZAROBA,
Cristiano; DA
CONCEIÇÃO, Daniel
Machado. 'Os herdeiros': questões sobre o campo esportivo. Linhas
(Florianópolis. Online), v. 15, 2014. p. 241-264. Disponível em:
http://www.periodicos.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723815292014317
VALLE,
I. R. A obra do
sociólogo Pierre Bourdieu:
uma irradiação incontestável. In:___. Educação e pesquisa. SP:
FEUSP, v. 33, n, 1, jan/abr, 2007. p. 117-134.
Nota: