Por Cristiano Mezzaroba
Especialmente a partir de março de 2020, nós brasileiros vivemos dias difíceis, duros, inseguros e estranhos. O mundo todo também, por certo, desde dezembro de 2019, quando, na China, identificou-se um novo vírus – o popular “novo coronavírus” – que fez os estados-nações fecharem suas fronteiras, enquanto os privilegiados que têm suas casas se fecharam nelas, na medida do possível, cuidando do mais essencial que temos: nossas vidas.
Mas o contexto brasileiro, não exclusivamente de agora, configurava-se como algo “estranho” e “perturbador” porque nossa situação política, social e econômica já se manifestava empobrecida, material e simbolicamente, anterior ao coronavírus e sua pandemia. Ou seja, aquilo que já estava difícil, trouxe um contexto de intensificação dessas dificuldades.
Assim, torna-se claro que vivemos uma situação-limite, ou seja, um fator contingencial que nos impõem dificuldades que outrora não experenciamos e que demanda um grau maior de reflexão sobre todas essas questões. Segundo aprendemos com Paulo Freire, conforme consta na sua obra “Pedagogia do Oprimido”, as situações-limites não são situações insuperáveis, mas oportunidades para se produzir um clima de esperança e de fé para superar tais situações-limites. Segundo Paulo Freire, precisamos exercitar a crença de que é possível superar esses momentos difíceis que nos são impostos.
Quando consultamos um dicionário, em relação aos termos “esperar” e “esperança”, vemos que ambos se confundem, e talvez temos aí uma explicação do porquê confundimos o ato de aguardar o tempo passar (uma perspectiva passiva diante da vida) com o ato de esperançar, enquanto uma perspectiva que mobiliza ação diante das dificuldades e dos problemas. No Dicionário Aurélio (2004), em sua versão eletrônica, esperar é considerado “ter esperança em; contar com”, “estar ou ficar à espera de; aguardar”; “ter esperança em; contar com a realização de (coisa desejada ou prometida)”; “ter fé; confiar”, enquanto o vocábulo esperança sugere uma compreensão quanto ao “ato de esperar o que se deseja”; “expectativa, espera”; “fé, confiança em conseguir o que se deseja”; “aquilo que se espera ou deseja”.
Visualizamos uma distinção clara entre os termos, embora o dicionário, veículo que apelamos quando precisamos aprender sobre as palavras que fazem nossa vida ter significado a partir das palavras e termos, não o faça: esperar seria deixar o tempo passar, como se algo “mágico” resolvesse nossa situação com o simples transcorrer do tempo cronológico. Já esperança é mobilizar reflexão e ação que busca um sentido em viver plenamente e com dignidade. A esperança, então, é entendida como um elemento que busca mobilização coletiva no sentido de transformação de situações-limites.
Poderíamos trazer ao debate, mesmo que rapidamente, dois autores que nos ajudam a pensar tanto nosso contexto de empobrecimento das experiências (BENJAMIN, 2009; 2012), como também o que precisamos para superar tais situações-limites, a prática da parresía, como aprendemos com Michel Foucault (CASTRO, 2004). Walter Benjamin apontava quanto às implicações da experiência em viver na modernidade (as duras vivências de choque que somos expostos cotidianamente e que não conseguimos processar a ponto de torná-las experiências), gerando um empobrecimento da humanidade em sua coletividade. Michel Foucault, por sua vez, retomando os clássicos gregos, expunha quanto ao conceito de parresía como a “coragem de falar a verdade”, a qual implica a relação com o outro e com o mundo, abrindo-se de forma franca, livre, enquanto prática de vida, o que demanda uma coragem porque a verdade vale a pena ser dita.
Nesse sentido, vivemos uma experiência em que temos visualizado as “mascaras” de certas instituições caírem, como é possível vermos a não isenção midiática ou mesmo as assimetrias e erros do sistema judiciário brasileiro (sem falar na explicitação dos vários problemas em relação às instituições de segurança nacional, como a Polícia Federal e mesmo as Forças Armadas).
Entretanto, identificamos um conjunto de agentes da sociedade brasileira, dos mais diversos campos de formação e atuação, que não se mostram “indiferentes” à situação. Lembremos, pois, do clássico texto de Gramsci (1917), quanto aos indiferentes, os quais ele critica por não se importarem com os outros, com o mundo e com a vida. Gramsci (1917) escreveu: “Odeio os indiferentes. Creio que viver significa tomar partido. Quem verdadeiramente vive, não pode deixar de ser cidadão e partisano. A indiferença e a abulia são parasitismo, são canalhice, não vida. Por isso odeio os indiferentes.”
Quando nos atentamos ao contexto brasileiro, é possível elencarmos, em diferentes campos, vários e várias cidadãos/ãs que não estão se mostrando indiferentes à nossa realidade:
No campo intelectual, vemos Djamila Ribeiro, uma filósofa negra enfrentando a misoginia, o racismo, o preconceito de classe, com a voz que se levanta para as mazelas brasileiras. Também vemos o professor, filósofo e advogado Silvio Almeida, despontando como uma importante e corajosa voz em relação ao racismo estrutural brasileiro. Outros, mais conhecidos, como o também filósofo Vladimir Safatle; o sociólogo Jessé Souza, o psicanalista Christian Dunker, o ambientalista indígena Ailton Krenak. Poderíamos nos estender em relação a outros campos, desde a educação, passando pela antropologia, pela história, economia etc.;
No campo jornalístico, vozes como da jornalista Eliane Brum e Leonardo Sakamoto, entre tantos e tantas outros/as;
No campo literário, Conceição Evaristo, Xico Sá, Antonio Prata, Cláudia Tajes etc.;
No campo artístico, uma explosão de indiferentes e corajosos, certamente porque tem sido um dos campos que mais vêm sofrendo com essa onda conservadora e obscurantista: o rapper Emicida; a cantora Zélia Duncan e os cantores Caetano Veloso e Chico César; a veterana atriz Fernanda Montenegro; e tantos e tantas outros/as;
No campo religioso ou espiritual, poderíamos elencar as mais variadas correntes, desde o padre católico Júlio Lancelotti (SP), com seu trabalho com os mais vulneráveis, enfrentando discursos de ódio da elite e de conservadores ortodoxos; o pastor evangélico Henrique Vieira (RJ); a monja zen budista, Monja Coen (SP), com ampla presença nos mais variados públicos;
Até entre Influenciadores digitais, sempre tidos como “alienados”, podemos elencar gratas surpresas como Rita Von Hunty (Guilherme Terreri Lima Pereira), com formação em Artes Cênicas e Letras, que, em seu canal “Tempero Drag”, expõe, reflete e discute criticamente questões polêmicas e cotidianas da sociedade brasileira; e um dos maiores influenciadores da juventude brasileira, Felipe Neto, que tem sido perseguido por combater haters e disseminadores de fake News.
Concluiria esse pequeno texto alertando que no nosso entorno estamos cercados de pessoas, desde nossos familiares, passando por colegas de trabalho e amizades que hoje se encontram fisicamente distantes, e também dessas pessoas que não conhecemos, mas que vamos nos aproximando por suas ideias humanistas, corajosas e que se importam com o “outro”, seja qual for esse “outro”, e assim, importam-se com o mundo, fazendo de suas ações, uma experiência de esperança para a Humanidade, combatendo os indiferentes: porque Gramsci nos ensina que precisamos tomar partido pela vida, pelo mundo, e isso nos força a odiar os indiferentes!
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, Walter. Experiência. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009.
BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D´Água, 2012.
CASTRO, Edgardo. Parresía. In: CASTRO, Edgardo. El vocabulario de Michel Foucault. Buenos Aires: Prometeo, 2004, p. 398-401.
DICIONÁRIO AURÉLIO ELETRÔNICO, versão 5.0, Positivo Informática, 2004.
GRAMSCI, Antonio. Os indiferentes. 1917. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FOdeio-os-indiferentes%2F4%2F39005. Acesso: 16 ago. 2020.
Cristiano Mezzaroba
Com formação em Educação Física e também em Ciências Sociais, ambos pela UFSC; mestrado em Educação Física (UFSC, 2006-2008) e doutorado em Educação (UFSC, 2014-2018), é professor, desde 2010, do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe, onde também atua, desde 2019, no Programa de Pós-Graduação em Educação (Linha Educação e Comunicação). Criou e coordena o GEPESCEF - Grupo de Estudos e Pesquisas Sociedade, Cultura e Educação Física (DEF/CCBS/UFS) e tem participado do Laboratório de Pesquisas Sociológicas Pierre Bourdieu (LAPSB/UFSC) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (UFSC/CNPq).
Gostei muito! Parabéns, professor!
ResponderExcluirParabéns professor! Verdade, na atual realidade que vivemos que não é novidade, precisamos sim não ser indiferentes com todas as barbáries que estão acontecendo. O discurso de ódio cada vez mais forte e a valorização do humano deixado de lado. Mais uma vez parabéns!!!
ResponderExcluirÓtimo texto! Esperançar! Para que possamos superar esses momentos difíceis que estamos vivendo e corroborando com o texto, que não nos mostremos indiferente as diversas situações que nos rodeiam.
ResponderExcluirUma boa reflexão, Cristiano. Gostei de como você começa com Paulo Freire e finaliza com Gramsci. Realmente, a História nos ensina que mesmo diante das situações-limites a vida continua, algo que a Clarissa Pinkola Estés também sempre gosta de relembrar. Essas situações-limites, ou limitantes em certos casos, são momentos que se configuram em feridas que deixam cicatrizes profundas na sociedade, nos indivíduos (seja perante sua vida privada ou na convivência social), e por isso o verbo esperançar, que nos remete a Paulo Freire, é sempre uma forma de fazermos com que as gerações mais jovens percebam o quanto a existência humana foi marcada por outras situações-limites e como elas foram "superadas" (ou enfrentadas, já que superar é algo mais difícil de conceber em determinadas ocasiões). e o quanto outras ainda virão pela frente.
ResponderExcluirDe modo geral, gostaria de deixar três observações, quando você afirma que "isso nos força a odiar os indiferentes!". A primeira é algo que a Pedagogia me ensinou e que é válida para distintos contextos, a de que o "forçar" é a opção menos pedagógica diante dos diversos processos formativos, e a menos eficaz (a não ser que seja para a produção massiva da ignorância). A segunda diz respeito ao "ódio" e ao discurso referente a ele, que para mim é uma palavra dura, que ao invés de nos abrir caminhos acaba nos limitando mais (ainda que eu entenda o contexto em que ela costuma ser inserida para salientar uma ideia contrária e essa e outras situações-limites, não consigo deixar de sentir algo de negativo nela, como se tivesse um efeito contrário e incitasse mais ódio). E a terceira é sobre os "indiferentes", ou algo que talvez seja pior, a indiferença em si, porque essa indiferença que afeta tantas pessoas não é algo inerente a elas, natural, mas uma produção cultural que envolve inúmeros aspectos e variáveis, por isso tento relativizar essa ideia relacionada aos indiferentes, uma vez que nem sempre essas pessoas podem ser efetivamente culpadas por isso (da mesma forma que penso se diante de circunstâncias que desconheço eu mesmo poderia fazer algo semelhante).
Enfim, agradeço pela leitura e pela reflexão.
Abraço!
Uma boa reflexão, Cristiano. Gostei de como você começa com Paulo Freire e finaliza com Gramsci. Realmente, a História nos ensina que mesmo diante das situações-limites a vida continua, algo que a Clarissa Pinkola Estés também sempre gosta de relembrar. Essas situações-limites, ou limitantes em certos casos, são momentos que se configuram em feridas que deixam cicatrizes profundas na sociedade, nos indivíduos (seja perante sua vida privada ou na convivência social), e por isso o verbo esperançar, que nos remete a Paulo Freire, é sempre uma forma de fazermos com que as gerações mais jovens percebam o quanto a existência humana foi marcada por outras situações-limites e como elas foram "superadas" (ou enfrentadas, já que superar é algo mais difícil de conceber em determinadas ocasiões). e o quanto outras ainda virão pela frente.
ResponderExcluirDe modo geral, gostaria de deixar três observações, quando você afirma que "isso nos força a odiar os indiferentes!". A primeira é algo que a Pedagogia me ensinou e que é válida para distintos contextos, a de que o "forçar" é a opção menos pedagógica diante dos diversos processos formativos, e a menos eficaz (a não ser que seja para a produção massiva da ignorância). A segunda diz respeito ao "ódio" e ao discurso referente a ele, que para mim é uma palavra dura, que ao invés de nos abrir caminhos acaba nos limitando mais (ainda que eu entenda o contexto em que ela costuma ser inserida para salientar uma ideia contrária e essa e outras situações-limites, não consigo deixar de sentir algo de negativo nela, como se tivesse um efeito contrário e incitasse mais ódio). E a terceira é sobre os "indiferentes", ou algo que talvez seja pior, a indiferença em si, porque essa indiferença que afeta tantas pessoas não é algo inerente a elas, natural, mas uma produção cultural que envolve inúmeros aspectos e variáveis, por isso tento relativizar essa ideia relacionada aos indiferentes, uma vez que nem sempre essas pessoas podem ser efetivamente culpadas por isso (da mesma forma que penso se diante de circunstâncias que desconheço eu mesmo poderia fazer algo semelhante).
Enfim, agradeço pela leitura e pela reflexão.
Abraço!